Estudo de LinkedIn e Think Eva mostra que, entre 47% das mulheres que relatam ter sofrido assédio sexual no ambiente corporativo, a insegurança é maior entre negras e quem ganha até dois salários (Por Marina Dayrell)
No começo deste ano, quando LinkedIn e Think Eva se juntaram para fazer uma pesquisa sobre assédio sexual no mercado de trabalho, esta reportagem procurou mais de 10 grandes empresas, brasileiras e multinacionais, para uma entrevista sobre as boas práticas que adotam para coibir esse tipo de crime. A recusa da maioria esmagadora em falar sobre o assunto deixou claro que o tema ainda é um tabu no mundo corporativo.
No entanto, os dados divulgados nesta terça-feira (6) com exclusividade pelo Estadão mostram que o tema precisa ser discutido. Entre as 381 mulheres ouvidas pela pesquisa “Trabalho sem assédio”, 47% afirmam já ter sofrido assédio sexual no ambiente de trabalho.
Ainda que seja uma questão de gênero e, por isso, atinja todas as mulheres, o levantamento mostra que o assédio acontece de forma desigual de acordo com um recorte racial. Entre as mulheres que afirmam já terem sofrido assédio sexual no mercado de trabalho, 52% são negras.
Além da questão racial, o recorte de classe também define quem são as mulheres que sofrem ainda mais as consequências dos assédios. A sensação de insegurança é maior entre as mulheres negras (54%) e entre aquelas com renda de até dois salários mínimos (51%). Os índices chegam a ser 10 pontos percentuais mais altos se comparadas as mulheres negras com outros perfis raciais (como brancas e amarelas).
Os resultados também mostram que, além de não conseguir coibir os assédios, as empresas têm falhado em conseguir a confiança das funcionárias e em solucionar as denúncias. Apenas 5% das respondentes dizem ter recorrido ao departamento de RH após um caso de assédio. A maioria, 50%, contou apenas para pessoas próximas. Já uma a cada seis mulheres pediu demissão.
A pesquisa faz parte de uma iniciativa inédita do LinkedIn no Brasil para identificar o assédio sexual sofrido pelas mulheres no mundo offline e na plataforma online. “Durante a pandemia houve aumento de 71% no conteúdo relacionado ao tema no LinkedIn. Queríamos entender se era exclusivo do mundo online ou reflexo do mundo offline. Concluímos que existem os dois, com o agravante de que o agressor acaba se sentindo mais protegido no mundo online”, afirma Ana Claudia Plihal, executiva de Soluções de Talento no LinkedIn.
A partir das respostas, as criadoras da pesquisa pretendem convidar as empresas a tomarem uma postura ativa para coibir os casos de assédio sexual. “É a mulher que sofre o assédio, é ela que tem que lidar, ela que fica silenciada a ponto de ir embora. Queremos jogar o debate de volta para a sociedade, para as empresas, para as pessoas que contratam e recrutam”, diz Maíra Liguori, diretora de Impacto da Think Eva.
Com o lançamento dos dados oficialmente nesta terça, o LinkedIn também anuncia novas ferramentas na plataforma e o uso de inteligência artificial para denunciar o assédio cometido dentro da plataforma. O Brasil é o primeiro País a receber o projeto, que será expandido para os outros países onde a empresa possui escritórios. No Brasil, a pesquisa ouviu 381 mulheres das cinco regiões e de todas as idades, a maior parte delas entre 16 e 34 anos.
Confira a seguir trechos da entrevista com Ana Claudia Plihal e Maíra Liguori, profissionais à frente da iniciativa.
O que motivou essa pesquisa?
Ana Claudia Plihal – Primeiro, tivemos interesse em entender como esse tema se comportava dentro do LinkedIn. Era um tema bastante presente na rede no Brasil – durante a pandemia houve aumento de 71% no conteúdo relacionado ao tema no Linkedin. Nós víamos um volume importante desse tipo de discussão, queríamos entender se era exclusivo do mundo online ou se era um reflexo do mundo offline.
Concluímos que existem os dois, com o agravante de que o agressor acaba se sentindo mais protegido no mundo online por ter uma tela entre a vítima e ele. Queríamos tratar do tema com toda a estrutura do ponto de vista de produto, políticas e ações, para dar respostas. Estamos começando pelo Brasil. Nos Estados Unidos e na França ele será disseminado até o fim do ano.
Qual o cenário que encontraram nas empresas em relação ao assédio sexual?
Maíra Liguori – Precisamos fazer um debate estrutural em relação à posição da mulher no mundo do trabalho. Ele era essencialmente masculino, feito por homens para homens com regras que servem para homens. Quando as mulheres brancas entraram no mercado de trabalho, o mundo não se alterou para atender às suas necessidades. Os comportamentos masculinos continuam expulsando as mulheres do mundo do trabalho.
A responsabilidade é das empresas. Nós temos esse debate enorme para promover essa mudança cultural urgente e necessária. O assédio sexual tira as mulheres do ambiente de trabalho. Como mostrou a pesquisa, uma em cada seis mulheres que sofreu assédio sexual pede demissão. As empresas estão alheias e omissas nessa questão. Criam-se canais pouco efetivos, não conseguem ter a confiança das mulheres.
A pesquisa também mostra que apenas 5% delas acabam fazendo denúncias no RH. É a mulher que sofre o assédio, é ela que tem que lidar, ela que fica silenciada a ponto de ir embora. Queremos jogar o debate de volta para a sociedade, para as empresas, para as pessoas que contratam e recrutam, para quem faz essas leis. Esse movimento é para buscar o resgate de uma conversa que é ampla: cabe assédio, maternidade, cuidado, um monte de outras questões que permeiam o universo profissional da mulher e que estão nas costas da mulher.
Qual o papel das empresas diante do assédio sexual?
Ana Claudia – A gente de fato acredita que tem que começar nas lideranças corporativas. O nosso trabalho é o de dar o retrato e o que as mulheres acham que pode ser feito. Nós já tínhamos uma pesquisa de tendência, desde 2019, onde os líderes de aquisição de talento já apontavam que uma das grandes coisas que impediam o crescimento e a produtividade das corporações são as políticas antiassédio flexíveis demais.
Chegamos a soluções bem práticas de como as empresas devem se posicionar: tolerância zero com casos de assédio denunciados, responsabilização, ter isso constantemente na prática das organizações, ter um ouvido afetivo para a escuta ativa das vítimas, assumir publicamente que é uma empresa que luta contra isso, que tem políticas para isso, se posicionar corporativamente no combate.
Em relação ao assédio no LinkedIn, que tipo de medida será tomada?
Ana Claudia – Quando vamos para a plataforma, nós trabalhamos para dar essa base para executar depois ações na mesma linha. As nossas políticas foram alteradas mundialmente para deixar claro o que toleramos e o que não toleramos. Definimos o que é assédio, o que é discurso de ódio, racismo, o que deveria ser comportamento adequado e o que não é. Isso nos dá base para atuar.
Por meio de inteligência artificial desenvolvemos códigos para interpretação e identificação de conteúdo que identificamos como assédio. Após identificado, o conteúdo passa por uma segunda análise, dessa vez humana, para real identificação desse conteúdo. A partir daí, algumas ações podem ser tomadas. A gente pode deletar o conteúdo e avisar o autor de que foi considerado agressão. Não é que o conteúdo apenas desaparece, nós vamos atuar e comunicar ao agressor sobre a ação que tomamos. No extremo, podemos bloquear o perfil dessa pessoa. Isso tudo para garantir que a gente tenha uma plataforma que faça com que a mulher se sinta segura.
Há uma diferença que é quando você vai pra mensagem privada, isso fica vinculado ao perfil do usuário, então não é uma busca robótica aberta porque não temos o direito a entrar nas suas mensagens. Mas quando você entrar na caixa de mensagens, o algoritmo vai varrer e vai te perguntar se você quer abrir aquela mensagem. Ele te dá a opção de deletar sem sequer ver, ver e julgar se foi assédio ou não, e denunciar. O suposto agressor pode solicitar uma explicação, que também será analisada. O que queremos é mais denúncias, porque com elas conseguimos atuar e não deixar o autor impune. E dar toda a segurança para a vítima denunciar e acompanhar a evolução do que foi feito com a sua denúncia.
É a primeira vez que o LinkedIn permite a denúncia de assédio na plataforma?
Ana Claudia – A possibilidade de denúncia já existia, mas a ferramenta não destacava o assédio, era escondido. Nós vimos que a pessoa não denunciava porque não sabia nem como fazia. Parte das ações que vamos tomar é mostrar como fazer isso, deixar bem claro “denuncie aqui um caso de assédio sexual”. Hoje, o tema ganha outra prioridade na nossa estrutura de análise. Uma denúncia de assédio passa na frente de qualquer outra denúncia, como perfil falso etc.
Os números mostram que há uma falta de confiança no RH. O que pode ser feito para que essa confiança seja estabelecida?
Maíra – Existe uma necessidade de quebra de paradigma. Hoje, o assédio sexual é um exercicio de poder. O RH não está preparado para equilibrar essas diferenças de poder. Temos casos que foram relatados em que as mulheres denunciaram os seus superiores e eles foram protegidos porque ocupam cargos hierárquicos e papéis estratégicos dentro do negócio e que não podem ser questionados e fragilizados.
Não existe um preparo do mundo corporativo para lidar com isso no sentido de desvincular o agressor do seu cargo. É uma violência e como qualquer violência precisa ser encarada como tal. Hoje as mulheres estão numa situação de maior vulnerabilidade por desequilíbrio de poder e por ser tratado de forma superficial, devolve para a vítima esse problema, revitimizando-a.
Muitas vezes, ela ouve coisas como: ‘Mas por que você topou ficar com ele até mais tarde no escritório? Como você não percebeu?’. Existem essas nuances que não podem estar em jogo na hora do debate. Essa é uma das principais questões e dificuldades do RH em mexer com grandes estruturas.
Ana Claudia – O RH institucionalmente é sempre definido como o canal, mas não foi criada uma plataforma de políticas de atuação sobre o RH. A mulher pode até ir ao RH, mas quando tem que lutar contra esse tipo de poder não tem a lei, a regra e a política para isso. Fica no meio de campo onde houve o que aconteceu, mas não tem como agir. Dentro das empresas, a partir do momento em que você revisita e deixa claro o que é assédio e o que vai acontecer, você divulga isso e instrumentaliza o RH para tomar ação.
De acordo com a pesquisa, como os recortes de raça e classe interferem na questão?
Maíra – O que a pesquisa mostrou é que as consequências do assédio são muito piores para as mulheres pretas e pardas. Diante do entendimento do problema, temos as consequências e as atitudes, como as mulheres reagem, e as consequências e atitudes são mais impactantes para essas mulheres. Elas já se encontram em posição de vulnerabilidade muito maior. Elas já têm dificuldade em acessar espaços de poder, são triplamente oprimidas, possuem mais medo de perder o trabalho.
Muitas vezes são a única fonte de renda da casa, então a sensação de insegurança, a culpabilização, o medo da demissão e até o questionamento máximo de ‘será que eu mereci?’ são maiores. Todas as opressões de classe e raça acabam fazendo com que elas sofram as consequências de forma mais grave.
Isso faz com que as mulheres que ocupam altos cargos estejam isentas de assédio?
Maíra – De forma alguma. Em cargos de gerentes para cima se tem uma consciência maior sobre o assunto. Elas debatem mais e falam mais sobre essa questão, elas têm uma sensação de segurança de que podem se manifestar e se expressar em relação a isso. Mas não estão isentas de sofrerem assédio. De acordo com a pesquisa, a incidência é muito semelhante, o que muda são as consequências e as atitudes. Como o assédio é uma questão de gênero, ele atinge todas as mulheres.
Ana Claudia – Pessoalmente, eu acredito que elas discutem mais justamente porque entendem que vão estar frequentemente em uma sala com vários diretores e provavelmente vão ser a única mulher, o que gera uma grande probabilidade de um assédio acontecer. Nós já ficamos mais preparadas a isso, vai criando robustez de como lidar. Já tivemos alguma situação em que fomos expostas e tivemos que lidar.
Chega num ponto que estamos no mesmo nível de poder e força para falar que não é brincadeira. É por isso que pessoalmente eu acredito que grande parte da transformação vai ocorrer em buscar aliadas que já passaram por isso e atingiram níveis de poder para educar pares sobre o que é admissível e o que não é.
Maíra – Na Think Eva fazemos muitos trabalhos dentro de empresas e o que a gente cansa de ver nas mulheres executivas é que, quando abrimos minimamente a escuta, elas trazem isso com muita força, muitas vezes chorando e fragilizadas. Mesmo ocupando os cargos de direção, mesmo protegidas pelo status e pelo poder que conquistaram, elas não estão imunes.
Existem níveis de sutileza, mas a pressão está ali. Existe uma misoginia, um exercício dos homens de mostrar que o lugar delas não é ali e que, se estão ali, vão ter que se comportar de determinada forma, que aquele mundo não foi pensado para elas.
Fonte: Estadão