Magistrados e magistradas do Trabalho não podem fechar os olhos para o momento de grave desmonte social pelo qual o país atravessa (Por Gustavo Ramos)
É fato notório que o atual modelo de regulação do trabalho não vem sendo capaz de assegurar proteção adequada, direitos e dignidade, a um universo crescente de trabalhadores e trabalhadoras. Diante dessa realidade, autores consagrados e ideologicamente identificados com uma narrativa conformista de interesse do capital apresentam a “era do fim do trabalho e do emprego”, como se defendia o “fim da história”, a partir da extinção da União Soviética.
Ocorre que a centralidade do trabalho humano para o ciclo do sistema capitalista continua óbvia e indiscutível. O modo como esse trabalho é prestado, em que condições e o cuidado com as pessoas que vivem desse mister é que está verdadeiramente em questão.
E nesse ponto a precarização do salário e das condições de trabalho campeia livremente, seja com o aumento do número de trabalhadores autônomos ou empreendedores de si mesmos, seja com a ampliação das formas de subcontratação de trabalho pela via da terceirização, da pejotização fraudulenta ou do trabalho prestado pela via de plataformas digitais e aplicativos.
De outro lado, longe de erradicarmos, seguimos testemunhando o trabalho análogo ao de escravo em várias partes do Brasil, o trabalho infantil em expansão, agora, porém, ao lado do trabalho de idosos que, sem aposentadoria, se veem obrigados a disputar vagas de emprego com seus próprios filhos, enquanto os acidentes de trabalho eclodem aos milhares num mundo do trabalho sem fiscalização e sem proteção preventiva suficiente.
Nesse contexto, a difusão de discursos de matriz desconstrutiva da centralidade do trabalho, ao lado da estigmatização dos sindicatos e da solidariedade de classe, do estímulo ao comportamento alheio à política e da alegada parcialidade abusiva da Justiça do Trabalho, constitui alerta significativo da importância do papel do Estado na promoção do reequilíbrio social, quando se constata o muito que ainda é preciso caminhar no campo das condições dignas de vida e de trabalho no Brasil.
A quadra atual possui similitude com a primavera do liberalismo europeu, logo após a Revolução Industrial, um dos períodos de maior exploração de homens, mulheres e crianças de que se tem notícia na história e que levou à substituição da concepção de Estado Liberal de Direito para o Estado Social de Direito. Naquela época, como hoje, a relação trabalhista era tida como uma relação puramente econômica e desumanizada, em que a absoluta liberdade de contratar era o grande estandarte.
Entre os diques de contenção aos desígnios do deusmercado de um capitalismo fundamentalista, transfigurado em neoliberalismo ou ultraliberalismo, em que todas as esferas da vida são mercantilizadas e onde o direito é visto pelo poder econômico e financeiro como um subproduto competitivo em escala mundial (em que sobrevivem, numa espécie de seleção natural, apenas as ordens jurídicas mais adaptadas ao rendimento financeiro), a Justiça, notadamente a Justiça do Trabalho, tem um papel relevante.
Componente de um Estado em disputa entre, de um lado, os que nada ou muito pouco têm e dele dependem e, de outro, os donos do poder econômico, que o querem para si para a construção de paraísos fiscais e sociais alicerçados na desregulamentação máxima do trabalho e na fuga de responsabilidades, a Justiça do Trabalho, como ramo do Poder Judiciário, há de se posicionar, em cada julgamento, entre dois polos: em favor da afirmação e ampliação da democracia nas esferas públicas e privadas, e portanto em favor do cumprimento dos desígnios constitucionais no campo trabalhista, comprometidos com a melhoria contínua da condição social dos trabalhadores; ou em favor de uma plutocracia, escondida em democracia formal, alheia à crescente e insustentável concentração de renda e poder na sociedade.
Se sua opção for a última, hipótese em que deixará de buscar efetivar os direitos trabalhistas e previdenciários e as normas coletivas que incrementem direitos, seu fim será certo, consoante evidências históricas em regimes ditatoriais ou autocráticos.
Portanto, cada magistrado e cada magistrada da Justiça do Trabalho tem uma relevante escolha a fazer e não pode se apequenar neste sensível momento histórico, fechando os olhos para a realidade sofrida e ao mesmo tempo altamente tecnológica do mercado de trabalho. É preciso atualizar conceitos, como o de subordinação, chave pela qual se acessa o arcabouço jurídico protetivo laboral, e pôr abaixo os modelos de direito processual repressivo às demandas trabalhistas e do direito do trabalho do inimigo, exemplificados na reforma trabalhista de 2017.
A Justiça do Trabalho precisa recuperar sua lógica fundacional, com juízes e juízas que compreendam que devem se importar com os direitos que justificam sua existência, independentemente de críticas e avaliações distópicas daqueles que invertem a realidade para protegerem o capital.
As Cortes trabalhistas devem atuar como guardiãs efetivas das normas, princípios, valores e objetivos constitucionais no campo do trabalho. Devem fazer com que a Justiça não seja apenas retributiva, mas também distributiva e dissuasória ao reiterado descumprimento de direitos sociais.
Concluímos com Alain Supiot e sua sábia observação de que a arte dos limites é para o Direito o que as portas e as janelas são para a Arquitetura: devem ao mesmo tempo proteger e se abrir para o exterior. É ao Direito que incumbe essa intermediação entre proteção e oxigenação, em função da evolução tecnológica e das novas realidades do mundo do trabalho. O Direito não pode ser visto apenas como um conjunto de regras que não se deve infringir, mas também e especialmente como direção, conjunto de fins a se atingir.
O Poder Judiciário Trabalhista, no que lhe compete, precisa fazer mais em prol da transformação para melhor da realidade sofrida dos trabalhadores e das trabalhadoras, ante os constantes avanços tecnológicos, a elevada concentração de renda em nível mundial e a cultura individualista reinante.
Fonte: Carta Capital