Estigma ainda recente da economia nacional, a inflação voltou a pressionar o orçamento das famílias no Brasil, em especial as de menor poder aquisitivo. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a alta de preços atinge de maneira diferente ricos e pobres.
Desde que a pandemia do novo coronavírus começou, em março do ano passado, a inflação oficial acumulada medida pelo IPCA foi de 7,39%. Para as famílias com renda de até cinco salários mínimos, porém, o índice medido pelo INPC foi maior, de 8,57%.
No início da pandemia, os índices chegaram a registrar deflação nos meses de abril e maio de 2020, em meio à retração da atividade econômica e à onda de bloqueios em todo o País. Mas nos meses seguintes os indicadores voltaram a subir, puxados por questões específicas.
O primeiro grande choque foi a alta do preço dos alimentos. Base da alimentação do brasileiro, o arroz disparou 76% no ano passado e o feijão preto subiu 45%. A alimentação em domicílio ficou 18% mais cara.
O que os economistas veem nos números, a população em geral sente no bolso. Morador de Santa Maria, região administrativa do Distrito Federal, o pintor Valdo Rocha, de 47 anos, diz que deixou de comprar carne no último ano por causa do preço do produto. “Não sei nem te falar a frequência com que como carne. Compro de vez em quando só para não esquecer o gosto”, disse.
Rocha, que tem renda mensal de cerca de R$ 2 mil, reclama também do preço do gás de cozinha e diz que vem deixando de comprar outros itens por conta da alta de preços. “Hoje em dia está tudo um absurdo.”
Embora a inflação atinja todas as famílias, o impacto maior recai sobre as classes mais baixas. Isso ocorre justamente porque produtos básicos – como alimentos, gás e serviços de energia elétrica – têm um peso maior na cesta de consumo destas famílias. Em outras palavras, os pobres gastam uma parcela maior da renda com comida, na comparação com os ricos. Quando o preço do arroz sobe muito, são os pobres os mais prejudicados.
“A inflação não é igual para todo mundo e incide mais desastrosamente sobre os mais pobres. As classes mais baixas estão tendo uma queda real no consumo enquanto as classes mais altas, que acumularam poupança durante a pandemia, se preparam para um aumento no consumo de serviços, que tem uma demanda represada”, explica o diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, Felipe Salto.
É por esse motivo que, no Brasil, economistas costumam repetir que a inflação é o principal encargo sobre a população mais pobre. Era assim no período de hiperinflação, entre o fim da década de 1980 e o início da década de 1990, e continua sendo assim agora.
“É um ‘imposto inflacionário’”, resume o economista Fernando Ribeiro Leite Neto, professor do Insper em São Paulo. “Com o mercado de trabalho fragilizado, o espaço para recomposição salarial é muito reduzido. Boa parcela da população está tendo perda de renda real (descontada a inflação).”
Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostram que, em meio à crise provocada pela pandemia de covid-19, apenas 38,5% dos reajustes salariais em 2020 resultaram em ganhos reais – ou seja, em aumentos acima da inflação. Outros 34% dos reajustes foram equivalentes à inflação e 27% ficaram abaixo do índice de preços.
Para o economista Mailson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda no governo Sarney e sócio da Tendências Consultoria Integrada, as classes mais baixas estão sofrendo um “duplo efeito” na renda. “Primeiro pela pandemia, que afetou de forma mais séria o mercado informal, onde estão os mais pobres”, explicou. “Segundo porque isso é agravado pela inflação mais elevada.”
Mailson lembra que a inflação é sempre uma espécie de “imposto inflacionário”. “Claro que isso é tolerável em níveis baixos, de 2% a 3%. Mas sempre que o índice sai disso, o imposto inflacionário se acentua, como está acontecendo agora”, diz.
“Quando a inflação aumenta, os preços ficam mais altos e o governo arrecada mais sem aumentar a alíquota de imposto. A inflação produz um aumento de receita sem o governo fazer esforço nenhum”, completa Salto.
O efeito é ainda maior sobre os mais pobres, que consomem bens e serviços que são mais tributados do que a renda. Assim, as camadas mais vulneráveis bancam a maior parte do “imposto inflacionário”.
O diretor da IFI ressalta que o aumento da inflação tem um efeito de “melhora artificial” das contas públicas, mas que não se sustenta no longo prazo. A inflação faz com que suba o valor nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Isso ocorre porque o preço dos bens produzidos na economia está mais alto, e não porque há aumento da atividade econômica propriamente dita. Crescendo o PIB, a relação entre dívida e PIB também fica menor em um primeiro momento.
“O problema é que não é sustentável. Não tem nada de estrutural acontecendo. O PIB potencial não aumentou, a produtividade está caindo, não aprovamos reformas para valer desde a da Previdência”, diz Salto. “A partir de 2022, voltamos aos problemas conhecidos. Temos risco de aumento de juros, de políticas externas afetarem a dinâmica da economia brasileira e o não avanço nas agendas que importam.”
Fonte: Estadão