DORES, MEDO, ANGÚSTIA. TRABALHADORES CONTAM SEUS SINTOMAS ANTES, DURANTE E DEPOIS DA COVID

“Vamos dizer que foi um momento que eu tive na fronteira da outra vida”, diz um trabalhador petroleiro de 44 anos, casado, lembrando de sonho que teve durante o tempo em que esteve internado com a covid-19, em uma espécie de vale a morte, próximo de uma cruz que poderia ser a dele. “Não, em momento nenhum eu senti medo. Acho que ali foi uma decisão, eu poderia partir ou voltar para a vida. Eu acho que eu senti essa vontade de continuar vivendo, e fui tirado dali.”

Mesmo tomando cuidados, como relata, ele acabou se contaminando. Os primeiros sintomas – febre e dor de cabeça – foram sentidos em 28 de março do ano passado, no início da pandemia. O médico receitou dipirona e também um antibiótico, por causa da tosse persistente. No terceiro dia, passou a sentir falta de ar, que só aumentava. “Ou eu falava ou respirava. As duas coisas eu não conseguia fazer ao mesmo tempo.” Internado, passou 15 dias na UTI. Ao retornar para casa, relatou sequelas, como dificuldades motoras para caminhar.

Sofrimento mental
“A pandemia que se abateu sobre o mundo carregada pela covid-19, trouxe ainda mais que o sofrimento da UTI ou o medo da morte”, diz Wanderley Codo, pesquisador em Psicologia Social da UnB. “Trouxe consigo o sofrimento psíquico que persegue os seres humanos com a mesma ferocidade do vírus. Este livro trata do sofrimento mental dos trabalhadores afetados pela covid-19, que é vivido em silêncio. Este livro cumpre a lacuna, revela a dor que não aparece nos jornais.”

A pesquisa identificou 21 sintomas físicos. Os mais comuns eram perda do olfato, dores generalizadas no corpo, nas costas, pulmões e cabeça. Metade teve pulmões comprometidos, de 25% a 50%. Foram comuns relatos de ansiedade, angústia e culpa (por contaminar outras pessoas).

Família contaminada
Um deles, um petroleiro de 46 anos, acredita que transmitiu a doença para a esposa, enfermeira no setor público. “Só que ela não trabalha na linha de frente, ela trabalha na Secretaria de Saúde, na gestão. Houve contaminação lá sim! Eu até achei que ela ia pegar primeiro e passar pra gente, mas acabou que eu que tomei a frente da doença. Ela teve depois. Sim, provavelmente eu passei pra ela, e também para minha filha”, conta o trabalhador. Ele relata que, mesmo com a confirmação da covid-19, ainda ficou 15 dias no serviço em vez de ser mantido em quarentena.

Se algumas empresas adotaram protocolos e medidas de prevenção, em outros casos faltaram cuidados. “Em muitos locais faltaram medidas de proteção preventivas e não foram evitadas aglomerações, daí a importância permanente da preservação da saúde dos trabalhadores”, diz o secretário de Saúde da Fetquim, André Alves. Muitos deles, conta, tinham de ir aos locais de trabalho sem transporte fretado. “Ou seja, tiveram de se submeter à aglomeração do transporte público, que continuou lotado, oferecendo cada vez mais riscos para a continuidade da pandemia”, lembra.

Política da morte
A situação foi ainda mais dramática devido à postura do Executivo federal. “O pior de tudo foi a política da morte adotada pelo governo Bolsonaro, que atrasou a vacinação, promoveu aglomerações e não deu exemplo para o distanciamento social. Pior: induziu parte da população ‘à bruxaria’, como na Idade Média, de tratamento cientificamente ineficaz”, afirma André, citando a CPI da Covid no Senado.

O livro pode ser baixado para leitura.

‘Novo modelo exige diálogo social’
O pesquisador da UnB Remígio Todeschini acredita que a pandemia reforçou a necessidade de mais diálogo na área de saúde e segurança do trabalho. Vindo do movimento sindical, ele afirma que os países mais democráticos têm normas e participação das entidades de trabalhadores. E acrescenta que as lições trazidas pela crise “vão na contramão” do modelo “neoliberal negacionista” e exigem transformações.

Seis dos 10 casos relatados apontam contaminação no local de trabalho. Você acredita que a covid, de alguma maneira, pode ser um parâmetro de uma nova conduta empresarial na área de saúde e segurança no trabalho?

Está determinando uma nova padronização que deve ser de diálogo social com os trabalhadores e suas organizações e não vão de encontro a modelos neoliberais de menores exigências em matéria de SST (saúde e segurança no trabalho). Onde houve imposições e assedio moral, o problema do contágio se intensificou. Os protocolos de SST de riscos biológicos deverão continuar.

E qual é o papel dos trabalhadores, em meio a um processo de desregulamentação e “flexibilização”?

Os trabalhadores deverão ter resistência à propostas de desregulamentação. Os países mais democráticos têm mais normas e mais participação sindical no campo de SST. É preciso avançar quanto à proteção de saúde mental, que se degradou na pandemia… E essa proteção deve estar presente tanto no SUS como nas fábricas, com mais profissionais dedicados a isso. Nas entrevistas dos contaminados, além dos problemas e agonia física, a questão psicológica foi muito ressaltada por eles nos 10 casos.

Passado um ano e meio de pandemia, que lições já podem ser absorvidas?

Diria que as lições serão permanentes e são completamente na contramão do modelo neoliberal, negacionista, anticientífico, fascista e autoritário. Repensar transporte de massa adequado… Ambientes laborais de qualidade, acesso maior à saúde física e mental. E maior participação, sempre, dos trabalhadores no seu trabalho como um todo.

Fonte: RBA