‘A INFLAÇÃO VAI RESSURGIR MUITO MAIS RÁPIDO QUE O ESPERADO’

Os bancos centrais de países desenvolvidos estão prestes a enfrentar um problema que arrisca mudar toda a dinâmica dos mercados globais: um ressurgimento rápido da inflação. Fatores estruturais, como a redução da força de trabalho, a reversão da globalização e o salto no endividamento, agora se somam aos efeitos da pandemia. Tudo isso deve gerar uma aceleração nos preços a partir de 2021.

Esse é o alerta do economista Manoj Pradhan, coautor do livro “The great demographic reversal: ageing societies, waning inequality, and an inflation revival” (“A grande reversão demográfica: envelhecimento das sociedades, diminuição da desigualdade e um ressurgimento da inflação”, em tradução livre), que foi selecionado por Martin Wolf, do Financial Times, como um dos melhores livros de economia do ano.

“Se a inflação aumentar muito rapidamente, é um problema, veremos um banho de sangue no mercado de títulos”

Ao Valor, Pradhan afirmou que os bancos centrais “não estão equipados para lidar com a inflação alta, porque os mercados também não estão equipados para lidar com ela”. Para ele, os investidores não estão acostumados a pensar na inflação por períodos consideráveis de tempo. Logo, se o processo de alta inflacionária acontecer mais rápido, “veremos um banho de sangue no mercado de títulos”.

Com doutorado em economia pela George Washington University e mestrado em finanças pela London Business School, o economista lidera a consultoria Talking Heads Macro, depois de ter ocupado o cargo de diretor-executivo no Morgan Stanley, onde se concentrou nos temas macroeconomia quantitativa, mercados emergentes e economia global. Veja os principais trechos da entrevista.

Valor: Que tipo de mudanças estruturais estão ocorrendo no mundo que podem remodelar o cenário de baixa inflação?

Manoj Pradhan: Se olharmos para as últimas décadas, é possível ver um aumento absolutamente gigantesco na oferta de mão de obra. Nunca vimos um aumento tão grande na oferta de trabalho como nos últimos 30, 35 anos, e isso permitiu às economias avançadas investir na China. As taxas de juros caíram porque a demanda por investimento era menor nas economias avançadas. O custo do trabalho caiu porque houve esse aumento enorme na oferta de mão de obra e o custo dos produtos manufaturados também recuou porque eles estavam sendo produzidos em mercados emergentes. A globalização, a demografia… tudo se misturou com a China e isso está diminuindo agora. À medida que o mundo perde a sua idade produtiva, que o crescimento da população começa a desacelerar e economias avançadas se tornam mais velhas, a tendência é haver uma reversão de alguns pontos.

Valor: O endividamento também ajuda a construir esse cenário?

Pradhan: Nunca estivemos em uma situação de dívida tão alta. Tivemos grandes picos de endividamento, mas eles ocorreram em guerras. Se observarmos as estatísticas, vamos ver um aumento da dívida por causa do envelhecimento, o que significa que o nível de endividamento não está diminuindo. O crescimento é uma função do aumento da oferta de trabalho e do aumento da produtividade. E a oferta de trabalho, em muitos casos, está indo, na verdade, para o território negativo, o que significa que precisamos de um aumento maciço de produtividade, milagroso.

Valor: Quando esse cenário de inflação mais alta pode começar a se materializar?

Pradhan: Quando escrevemos o livro, em 2019, não tínhamos ideia de que haveria uma pandemia, não sabíamos efetivamente quando a inflação apareceria e a nossa melhor estimativa era a de que isso ocorreria em algum momento nos próximos três a cinco anos. No entanto, depois do que aconteceu, estamos convencidos de que a inflação vai ressurgir muito mais rápido do que pensávamos antes. Provavelmente no fim de 2021 ou, talvez, no início de 2022, começaremos a ver alguns sinais de inflação.

Valor: Mesmo após a crise de 2008, a inflação relutou em voltar nas economias avançadas…

Pradhan: Precisamos pensar na crise atual como algo diferente. Daquela vez, o dinheiro foi injetado no sistema financeiro. Agora o dinheiro vem das autoridades fiscais e está indo dos governos para as pessoas e dos bancos para as empresas. Uma parte da população também tem mais poupança e, quando elas voltarem ao trabalho no dia a dia, vamos ter uma grande quantidade de pessoas que economizaram até agora. O Brasil está indo bem no processo de recuperação. A Rússia, o Reino Unido, os EUA… muitos lugares estão indo bem. A última parte do quebra-cabeças está nas falências. Muitas empresas faliram e outras não conseguem operar no mesmo nível de antes. Há chance de que as injeções fiscais que foram implementadas, os juros incrivelmente baixos, indiquem aumento muito mais rápido da demanda, enquanto a oferta ainda estará muito mais gradual. Se olharmos para os agregados monetários, acho que o que aconteceu na crise da covid vai levar a uma inflação mais alta muito mais rápido.

Valor: Os mercados estão precificando o retorno da inflação? Como esse cenário pode remodelar a dinâmica dos ativos?

Pradhan: Os mercados definitivamente não estão precificando o retorno da inflação. E acho que não apenas os mercados, mas também as ações dos bancos centrais terão de ser remodeladas. Se estivermos certos e as taxas de juros começam a subir, isso vai abalar os mercados. Os investidores não estão acostumados a pensar na inflação por períodos consideráveis de tempo. As repercussões serão importantes para os mercados de ações, para os rendimentos dos títulos. Se os yields dos títulos do governo aumentarem, o custo do serviço das hipotecas também aumenta. Isso se aplica à precificação de títulos corporativos. O mundo inteiro muda seu alinhamento. Se acontecer de maneira benigna, lenta e simples, tudo bem, talvez possamos lidar com isso lentamente. Se acontecer mais rápido, é um problema, veremos um banho de sangue no mercado de títulos.

Valor: A atuação dos bancos centrais também muda em um cenário de inflação mais alta?

Pradhan: O papel do banco central, especialmente nas economias avançadas, mas também nos mercados emergentes, mudou. Muitos começaram a fazer QE. Nessa expansão, o papel do banco central não é apenas fornecer estímulo monetário e ser o protagonista. Na verdade, ele é o segundo jogador mais importante, já que o primeiro é a política fiscal. O papel do banco central tem sido financiar a política fiscal. Portanto, se as expectativas de inflação começarem a subir e os rendimentos dos títulos começarem a subir, fica difícil financiar a política do governo. O que o banco central pode ter de fazer é entrar e implantar o controle da curva de juros. O problema com o controle da curva de juros é que a inflação está subindo e o banco central não está permitindo que o custo dos empréstimos aumente tanto quanto a inflação. Isso significa que as taxas de juros reais vão ser ainda mais pressionadas. Isso só incentiva a inflação.

Valor: É um dilema para os BCs…

Pradhan: A questão crucial é: os BCs ficariam muito confortáveis com o fracasso, mas incrivelmente desconfortáveis com o sucesso. Se eles realmente obtiverem a inflação que todos dizem querer, eles não estarão equipados para lidar com ela, porque os mercados também não estão equipados para lidar com ela. E a composição atual da política fiscal e da interação com a política monetária definitivamente não está pronta para lidar com o aumento da inflação.

Valor: O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, pode reverter a tendência contrária à globalização?

Pradhan: Não tenho certeza se é do interesse dele fazer isso. É muito difícil para um presidente dizer: vou permitir a globalização e permitir que mais empregos sejam enviados para o exterior – seja verdade ou não. Então, se ele for suave com a China, se encorajar a globalização e encorajar que as empresas pensem na cadeia de suprimentos global em vez de algo localizado, isso o afetará muito politicamente. O que ele pode fazer – e eu acho que ele fará – é manter o status quo. E os mercados estão contentes com isso. A China está contente com isso. Enquanto você não piorar o conflito comercial, as pessoas permanecerão felizes em todo o mundo. Acho que isso será visto como uma coisa astuta.

Valor: Como o Brasil e os demais mercados emergentes se encaixam nesse cenário?

Pradhan: O Brasil tem um hiato do produto negativo há três ou quatro anos, e esse hiato ficou ainda mais negativo. A menos que o país sofra um choque externo, que enfrente uma situação em que o dólar esteja extremamente forte ou que haja um grande choque de oferta, é difícil ver a inflação brasileira sendo um problema extremamente difícil para o Banco Central. Temos de olhar também se o Brasil está gastando demais, se está excedendo os ganhos. À medida que voltamos à vida normal, podemos ver aceleração na inflação, mas temos que olhar além. Não tenho certeza se a inflação dos emergentes, particularmente tipificada pelo Brasil, é o principal problema com o qual realmente devemos nos preocupar. É mais crescimento, desenvolver um modelo de crescimento. O mundo deu a emergentes e Brasil uma oportunidade única de fazer as coisas certas. Infelizmente, em muitos casos, parece que não estão aproveitando isso.

Fonte: Valor Econômico