Indicador considera o efeito da paralisia do mercado de trabalho em ambiente de alta nos preços; personagens entrevistados pelo G1 ao longo da crise causada pelo coronavírus confirmam dificuldades financeiras.
A escalada da inflação e a recuperação tímida do mercado de trabalho desencadearam um novo recorde negativo para a economia do país, o do “índice de miséria”. Trata-se de um indicador simplificado que mede a satisfação da população com o panorama econômico atual.
Ele agrega o percentual de desempregados no país medido pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor, o INPC, ambos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Assim, cria-se uma relação básica entre a queda de renda e aumento do custo de vida.
É utilizado o INPC em vez do IPCA porque este é um índice que retrata melhor a cesta de consumo de famílias de renda mais baixa. Segundo o IBGE, a população-objetivo do índice é moradora de área urbana e tem rendimentos de 1 a 5 salários mínimos.
Dentro da metodologia uniformizada pela Pnad em 2012, o mês de maio registra o maior resultado do índice de miséria. Com a taxa de desemprego no Brasil em 14,6% no trimestre encerrado naquele mês, o indicador renovou recorde histórico, chegando a 23,47 pontos.
O cálculo foi feito pela LCA Consultores. E antes de melhorar, a consultoria espera que a situação piore nos meses de junho, julho e agosto. Ao final da escalada, dada a expectativa de alta da inflação em 12 meses, os economistas preveem uma subida do indicador a 24,28 pontos.
Com o avanço da vacinação contra a Covid-19, há consenso entre economistas de que haverá um novo “aquecimento” da circulação de pessoas e, por consequência, da atividade econômica. Os níveis de emprego, então, devem colher alguma melhora nos próximos meses. Mas choques inflacionários seguem com vigor, afetados pelos preços da energia elétrica, combustíveis e alimentos.
“Além de choques mais persistentes, há uma retomada por vir do setor de serviços que pode trazer mais inflação. Muitas empresas fecharam e há uma necessidade de repasse de custos por parte de quem sobrou”, afirma Bruno Imaizumi, economista da LCA Consultores.
Outro quesito inflacionário que pode intensificar o problema é o de bens industriais. Há uma escassez internacional de insumos para produção, que também faz subir os preços.
Retomada distante
O índice de miséria foi criado pelo economista americano Arthur Okun como um “termômetro social” simples para medir a satisfação da sociedade com a economia. Ele foi membro dos conselhos econômicos dos presidentes John F. Kennedy e Lyndon Johnson.
Para “validar a teoria”, o G1 retomou contato com três personagens de matérias publicadas durante a crise causada pela pandemia do coronavírus para entender se suas condições financeiras pioraram na prática.
Logo no início da crise, o fotógrafo autônomo William Paiva contou que viu seu faturamento ir a zero com a paralisação do setor de eventos. Sem reservas financeiras, a fuga de dinheiro impactou a conta bancária imediatamente.
Ele teve acesso ao Auxílio Emergencial em 2020, que compôs a renda junto com o seguro-desemprego de sua namorada. Em sua segunda entrevista, conta que fez alguns bicos de pedreiro para complementar os ganhos. No fim do ano, conseguiu um emprego formal como atendente de telemarketing.
Em pouco tempo, no início de 2021, Paiva foi demitido em um dos vários cortes feitos pela empresa. Por causa do registro em carteira, não teve acesso à nova rodada do auxílio. Com renda apertada, afirma que a família precisou reduzir as compras no supermercado, além de selecionar cortes mais baratos de carne e fazer troca de marca dos produtos.
“Continuo procurando emprego na área editorial, que remunera melhor. Mas o que ouço do pessoal do setor de eventos é que o mercado deve se aquecer até o fim do ano por causa da vacinação”, diz Paiva.
Além de fotografar, ele também tem experiência como bartender e diz que donos de casas de festa retomaram contatos para deixar profissionais de sobreaviso. Mas, por conta da situação da pandemia, ainda é incerta a data de retorno da atividade regularizada das casas noturnas.
Auxílio insuficiente
Em Iguatu, interior do Ceará, a família de Hilderlania Alves enfrenta aperto ainda maior. O preço do gás obrigou a substituição por um forno a lenha em casa. No mercado, também é necessário priorizar produtos mais baratos.
“Temos pescadores por perto que têm preços melhores, mas não deixamos mais de fracionar as refeições. Não sobra”, diz ela.
Hiderlania conversou com o G1 como exemplo de família que havia se beneficiado do Auxílio Emergencial. Em setembro de 2020, os rendimentos da casa subiram dos habituais R$ 1,3 mil para R$ 2,5 mil por mês. A mãe e ela recebiam R$ 600 cada uma.
A redução para parcelas de R$ 300 já havia complicado as finanças da família, mas o término do benefício foi a gota d’água. Antes mesmo da crise, o pai de Hiderlania havia comprometido a renda com empréstimos consignados para tratamentos de saúde. Os pagamentos atrasaram. Sem o auxílio, a renda quase zerou. Mesmo com o retorno em 2021, apenas sua mãe passou a receber R$ 250 mensais.
“Teremos que parcelar o cartão de crédito neste mês, mesmo sabendo que pode virar uma bola de neve”, conta.
A boa notícia é que ela conseguiu manter os estudos. Hiderlania quer prestar vestibular para medicina e é bolsista de um cursinho de Fortaleza. Por ora, ela agradece que as aulas continuem sendo remotas. Não sobraria dinheiro para habitação na capital.
Melhora gradual
Maria José de Almeida, a Nena, traz boas notícias. Ela falou ao G1 em reportagem sobre o aperto de rendimentos que encolheu a classe média durante a pandemia. Em abril deste ano, o salário como empregada doméstica havia sido reduzido pela metade e sua filha, que havia perdido o emprego, teve que voltar a morar com ela.
Quatro meses depois, vacinada, retornou ao trabalho integralmente, com salário cheio. Há cerca de uma semana, sua filha também conseguiu voltar ao mercado de trabalho. A escola dos gêmeos Maxsuell e Rikelmy reabriu, o que também ajuda a diminuir as contas da casa.
Nena contou em sua primeira entrevista que foi obrigada a recorrer à antecipação do saque do FGTS para zerar os débitos e não sofrer corte de luz.
“Quando a situação apertou, fiz o empréstimo e levarei três anos para pagar. Mas, pelo menos, o horizonte se tornou positivo”, diz ela.
Assim como os demais, reclama dos preços do supermercado e, sobretudo, do gás de cozinha. Mas diz que o retorno ao normal a tem feito “dormir despreocupada”.
Confusão estatística
Os resultados do índice de miséria têm um pequeno asterísco, em virtude da recente confusão com as estatísticas de emprego do país. Em suma, houve um descolamento de resultados entre as duas principais pesquisas conduzidas no Brasil.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, costuma usar os resultados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) para dizer que o país já colhe recuperação nos índices de emprego. A pesquisa mostra que foram criadas 1,5 milhão de vagas de emprego formal apenas em 2021.
Acontece que o trabalhador que foi mais afetado pela pandemia foi o informal, um campo em que o Caged não gera estatística. A Pnad, do IBGE, embarca os trabalhadores informais nos números, mas pode estar subestimando o número real do emprego porque a sondagem foi totalmente transferida para o formato remoto, feita por telefone.
“Certamente houve alguma distorção. O IBGE retornou recentemente a um esquema híbrido, com pesquisas presenciais e atualizando a base de telefones, o que pode captar melhor quem voltou a trabalhar”, lembra Imaizumi, da LCA.
“Por enquanto, não adianta comemorar o Caged porque há muita recuperação a ser feita pelo lado do trabalho informal”, diz o economista.
Com a melhora no mercado de trabalho e diminuição dos choques inflacionários, o cálculo da LCA é que o ano deve terminar mais ameno para o índice de miséria. Ao fim de 2021, a consultoria espera que o número caia para 21,58 pontos. Mesmo que a queda se confirme, o indicador continuaria mais alto que todo o ano de 2020.
Fonte: G1