“A empresa se esforça para montar uma grande imagem, enquanto do lado de dentro já teve casos de assédio sexual e enfrenta processos por ter acobertado isso.”
“Damos bolinho de sexta com cerveja, somos cool, mas você trabalha que nem cachorro de forma desorganizada e desestruturada.”
“Se pagam de legais e modernos, mas o ambiente é machista e racista, com gerência fraca e despreparada.”
As declarações acima fazem parte de um novo fenômeno no mercado de trabalho: as planilhas ou perfis de redes sociais anônimos que reúnem desabafos de pessoas sobre a empresa em que trabalham.
A moda começou em 2016, com uma planilha sobre agências publicitárias. A quantidade de desabafos e o peso das denúncias fizeram com que viralizasse rapidamente. Logo vieram iniciativas similares, focando em empresas de jornalismo, escritórios de arquitetura, startups e até bares e baladas. Este ano, circulou outro documento com relatos de como as agências de comunicação estavam lidando com a pandemia de Covid-19.
Chefe gritando? A nova geração não aceita
“Há uma geração de pessoas nascidas a partir de 1986, e que entraram no mercado entre 2008 e 2010, que valoriza muito o equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Ela não aceita mais trabalhar em um ambiente tóxico, vendo líderes gritando com as pessoas”, afirma o professor Joel Souza Dutra, professor da USP e coordenador do PROGEP, o Programa de Estudos em Gestão de Pessoas da FIA.
Dutra e outros consultores de RH ouvidos por UOL Economia consideram o fenômeno das planilhas anônimas uma evolução natural do mercado e da sociedade – acompanhando, por exemplo, o fortalecimento do debate público sobre racismo e assédio, e a crescente importância das redes sociais.
“Há também uma tendência cada vez maior de transparência nas organizações, e um reflexo disso é o aumento de popularidade das pesquisas e prêmios de clima organizacional”, afirma. Dutra é um dos responsáveis pela metodologia da pesquisa que definirá os vencedores do Prêmio Lugares Incríveis para Trabalhar, em novembro. As inscrições estão abertas até 12/9.
Como evitar aparecer nas planilhas
Para Renato Santos, sócio-fundador da S2 Consultoria e IPRC Brasil, se uma empresa não deseja ser alvo de reclamações públicas sobre seu ambiente de trabalho, é fundamental manter canais internos eficazes para ouvir os funcionários. “É preciso ainda reforçar a importância que ela dá ao tratamento das denúncias que chegam ao canal, e isso é uma tarefa diária”, afirma.
Outros indicadores, como a taxa de evasão de funcionários e o absenteísmo, também podem ser úteis. Mas Dutra destaca que líderes e gestores de RH precisam ir além dos números. “A construção de um bom ambiente de trabalho é uma questão de sensibilidade e atenção contínua”, afirma.
“Coisas simples, como conversar com o médico da empresa, sem mencionar nominalmente os funcionários, podem ser de grande ajuda”, continua. “Como existe sigilo entre médico e paciente, muitos se sentem à vontade para abrir o coração nas consultas, e isso pode ser uma boa forma de saber mais sobre o estado de espírito geral”.
E se a empresa já foi citada?
Caso a empresa já tenha sido alvo de relatos na internet, especialistas em RH sugerem, primeiro, averiguar a veracidade das informações com cautela e isenção. Caso envolva tema sensível ou faltem ferramentas para tratá-lo, vale buscar ajuda externa, com consultorias especializadas. Mas, mesmo se os relatos não contiverem denúncias graves, é importante dar atenção a eles.
“É preciso entender se existe coerência nos conteúdos negativos e tentar encontrar a origem do problema”, aconselha Andressa Schneider, co-fundadora da 99jobs, plataforma que traz avaliações de empresas.
Problemas envolvendo assédios e a gestão, por exemplo, estão entre as reclamações mais comuns, o que pode indicar uma cultura tóxica arraigada. “O assédio é um fenômeno multidimensional: não é só um problema isolado entre assediador e assediado, mas geralmente é resultado de uma cultura retroalimentada por um comportamento de pressão por resultados. O líder está exatamente no meio dessa dinâmica e, por isso, é comum o seu envolvimento”, explica Santos.
Por fim, sendo os relatos verdadeiros ou não, é preciso criar um trabalho de comunicação com a sociedade e a comunidade interna para minimizar seu impacto. Se forem falsos, a empresa deve mostrar isso com fatos e dados e explicar que aquilo não traduz seus valores.
Se refletirem a realidade, é preciso agir para que a situação não se deteriore ainda mais. “Além de fazer um trabalho profundo de reflexão, a empresa precisa provar que irá tratar os problemas de forma adequada. As pessoas não desejam apenas falar, elas querem saber que algo está sendo feito”, afirma Suzie Clavery, especialista em marca empregadora e talent marketing manager do UnitedHealth Group. “Organizar grupos focais para criar projetos de melhoria do clima organizacional e fazer pesquisas internas periódicas para abrir o diálogo também podem ajudar”.
A importância da transparência
Mesmo com canais internos, as pessoas provavelmente continuarão falando sobre a empresa “da porta para fora”. Plataformas como Indeed e Glassdoor já trazem há alguns anos milhões de avaliações de empresas feitas pelos próprios funcionários.
Em vez de ser um problema, isso pode virar uma fonte de informações para melhorar o ambiente de trabalho, como prova a fintech PicPay. Após notarem algumas críticas no Glassdoor sobre a falta de oportunidades para os funcionários dentro da empresa, a gestão implementou mudanças.
“Criamos um programa de recrutamento interno e todos são estimulados a conhecer novas áreas e desafios, impactando diretamente nos índices de turnover e retenção de talentos”, conta a head de RH Mariana Damiatti.
Por fim, é importante também ressaltar que muitas queixas indicam apenas a falta de “química” entre o funcionário e a empresa.
“Nem todos os tipos de perfis funcionam para todos os tipos de empresas e vice-versa, e tudo bem. O importante é que a empresa seja transparente para atrair os talentos que funcionarão bem naquele tipo de ambiente”, afirma Suzie.
“Os profissionais não estão mais aceitando a incoerência entre discurso e prática. Se a empresa faz propaganda enganosa, os fatos logo irão denunciá-la, o que irá prejudicar ainda mais a sua imagem. A mentira tem perna curta, e na internet ela fica mais curta ainda”, afirma Dutra.
Fonte: UOL